segunda-feira, 4 de maio de 2015

A beleza constrangedora

Certo dia, conversando com minha amiga Laura Lagub, grande cantora e preparadora vocal, mencionei com ela algo que havia percebido. Contei que às vezes sentia que ficava constrangida com minha voz. Ok, todo mundo fica com vergonha quando a voz dá aquela falhadinha, não é? Mas o que eu contei a ela era exatamente o contrário disso.
O que acontece é: quando minha voz chega a seu ápice, quando soa bela demais, me bate um constrangimento. Assim sendo, no momento em que percebo isso dou um jeitinho de, aí sim, falhar, fazer algo para dar aquela piorada – rapidamente, mas o suficiente para quebrar o momento mágico.
Parece absurdo, e é. Mas continua sendo verdade. Minha voz, quando muito boa, me deixa sem graça. Como se aquilo fosse uma afronta. Como se “não pudesse”, por alguma razão.
Lembro do comentário de Laura sobre o que eu disse: “É que cantar é liberdade demais. Demais.” Disse isso e teve que atender o interfone, pois algum amigo estava chegando. Este papo específico foi esquecido no dia, mas acho que não era preciso desenvolver mais que isso: o recado estava dado. Esta liberdade que cantar nos dá realmente assusta, a beleza assusta, a magia disso tudo assusta.
Cantar é liberdade demais, sem dúvidas. O instrumento voz é incrível, absolutamente impressionante. Controlamos nossas notas com o pensamento. Não precisamos de nada, além do nosso corpo, para cantar. Cantar é colocar a alma para fora, literalmente, porque a voz vem de dentro, vem do coração aberto ou quebrado, do nó na garganta, do frio na barriga. Cantar é escancarar o que está acontecendo dentro da gente, e há grandes chances disso ser forte demais.
Lembro que certa vez, em 2007, em um dos ensaios do Dá no Coro, estávamos fazendo nossa preparação vocal com Glaucia Henriques, e quando ela pediu a uma das cantoras que emitisse determinada nota – que eu me lembre era um daqueles agudos poderosos –, a menina apenas cochichou algo no ouvido dela e saiu da sala rapidamente, chorando. “Não é incomum isso acontecer”, disse Glaucia.
A cada dia tento entender mais estes mistérios não tão misteriosos assim do nosso corpo. Esta coisa do canto ligar alguma ignição em nossa alma, nos levando a lugares obscuros, lugares que preferiríamos evitar. Lugares doídos da lembrança, ou cheios de saudades, ou de uma alegria desmedida, uma beleza gigante – que constrange, e, de tão rara, pode nos deixar a dúvida: “será que pode?”
A questão é que a voz não nos poupa da viagem. Ninguém usa o corpo e a respiração assim, impunemente. Cada pessoa tem sua própria questão a resolver, tem uma história de vida, e ao cantar isso virá a reboque, ou deveria vir (se não vier, talvez a escolha de repertório/as composições estejam distantes demais daquilo que realmente se é – mera suposição). A insegurança, a alegria, a timidez, a espontaneidade, a força, a vontade de aparecer, o jeito desafiador... Transparecerá aquilo que se é e aquilo que se tem.
E, se é beleza, que apareça e venha, sem medo.


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