sexta-feira, 7 de junho de 2013

Jogando nas onze

Sempre admirei muito quem vive exclusivamente da música, dentre meus colegas. De fato, deve ser um grande desafio e um privilégio, ao mesmo tempo. Trabalhar exclusivamente com aquilo que se ama, aquilo que se faz de melhor. E é claro que esta dedicação exclusiva, consequentemente, sempre traz mais trabalhos e proporciona que o músico seja cada vez mais requisitado e conhecido no meio. Além de ficar cada vez melhor em sua função (“quem toca mais, toca mais”, certa vez ouvi de um percussionista-poeta!).
Sempre quis poder fazer isso. Quando cantava na noite, pensava: “Seria bom ter tempo para pensar com toda a calma no repertório. Seria bom acrescentar novas canções a cada semana e ter mais tempo para ensaiar com o violonista...”. Infelizmente meu repertório ficava muito tempo “estacionado” com as mesmas músicas, e eu não conseguia pensar com toda a calma no figurino e em outros detalhes. Não conseguia organizar bem meu tempo para dar igual atenção aos meus dois trabalhos. Por isso, pensava o quanto seria bom só cantar, mais nada!
Mas, neste ano de tantas mudanças que tem sido 2013, minha opinião sobre isso mudou um pouco.
Trabalho como tradutora, revisora e copidesque. Felizmente é um trabalho que faço em casa, o que colabora muito com o meu trabalho de cantora. Posso montar meus horários, tenho bastante flexibilidade. E é algo que tenho muito prazer em fazer, pois lidar com letras e livros é sonho antigo - desde os 10 anos de idade, quando li Lygia Bojunga pela primeira vez, fiquei apaixonada por literatura e quis me tornar escritora.
Mas se há um ano eu, apesar de gostar, lamentava ter que fazer traduções pela manhã depois de uma cansativa noite de show, hoje não o faço mais. Acho bom e – quem diria – também um privilégio ter este outro trabalho. Graças a ele, não coloco um peso enorme, uma responsabilidade gigante sobre a música. Graças a ele, posso negar qualquer show que, em minha avaliação, seja apenas perda de tempo. Graças a ele (e esta é a melhor parte) posso ter uma atitude mais política artisticamente e não consentir com coisas que considero incorretas. Posso dizer “não” àquela casa que trata os músicos na base dos 50 reais, por exemplo.
Outro dia, no início do ano, estava falando com um instrumentista exatamente sobre esta questão de tocar ou não em lugares que não valorizam o músico, e comentei que há minutos atrás eu havia recusado, por telefone, o convite para tocar em uma casa da Lapa (a casa é conhecidamente desonesta: fatura muito, muito dinheiro e paga um valor irrisório aos músicos, comparativamente. É uma das poucas casas que teria a oportunidade de tratar os músicos com dignidade e não o faz. Estamos falando de uma casa rica, não de um barzinho humilde!). Meu colega disse: “Eu não recuso porque não estou podendo”... E é verdade. Certamente ele não pode fazer isso, pois vive exclusivamente de sua função de instrumentista. Mas fico feliz em perceber que, por não viver só de música, posso optar. Posso encaminhar da forma que quero minha carreira. E a parte mais preciosa é essa: posso boicotar aquilo que considero errado; posso não participar de nada que eu considere injusto. Posso não ser cúmplice de quem faz com que os músicos, cada vez mais, se tornem profissionais desiludidos com a carreira que tanto amam.
(Às vezes penso: “será que estou ficando radical demais?”. Acho que sim. Mas será que isso é ruim?)
É claro que certas vezes fico com pena de não estar fazendo uma produção do meu trabalho, pois preciso terminar as laudas de uma tradução. É claro que preferiria estar praticando mais meus instrumentos, movimentando mais minha carreira de cantora. Mas é o outro lado da moeda. A diferença é que agora não reclamo de ter que “jogar nas onze”. Pelo contrário, fico feliz de ter um trabalho que sustenta minha carreira. Que, além de tudo o que já citei, possibilitou também que em diversas ocasiões eu garantisse um fixo para os músicos que tocaram comigo em casas que lucram muito pouco, sem deixá-los na incerteza da porcentagem do couvert
Lembro que há dois anos um músico disse para mim e meu produtor que nós dois “tínhamos outros trabalhos”; com isso, o indivíduo argumentava que ele, ao contrário de nós, era profissional e levava aquilo muito a sério. Acho que, de fato, na época eu não me levava mesmo muito a sério: não me organizava como hoje, não impunha minhas vontades, não era ativa na minha função de cantora (isso também é assunto para outro post, sem dúvidas!). Mas hoje, dois anos depois, vejo que EXATAMENTE porque levo meu trabalho como cantora muito a sério é que não sou só musicista. Porque preciso de outra renda que me possibilite pagar uma preparação vocal, por exemplo. E se este indivíduo, ou qualquer outra pessoa, achar um demérito o fato de eu ter outro trabalho (porque isso evidenciaria que não sou “cantora profissional”), bem, talvez não seja através deste texto que irei convencer alguém de que sim, sou cantora profissional. E, talvez, não seja importante convencer ninguém de nada; apenas fazer meu trabalho com todo o cuidado, como venho fazendo nos últimos tempos.
Meu sonho maior é cantar, “musicar” 24 horas por dia. Mas tudo tem o seu tempo, e ainda não é a hora de (e nem seria possível) largar tudo e viver só da minha voz. Pelo contrário: agora é hora de trabalhar bastante para poder investir no que amo e colher os frutos com o passar do tempo.
Continuemos, então, jogando nas onze!


2 comentários:

  1. Guidi, oi.
    Acho pertinente sua posição. O mais importante do texto pra mim é o fato de não corroborar com as casas porcas - as que tratam os trabalhadores em geral, garçons, limpeza, como subtrabalho, incluindo aí os músicos.
    Seria possível viver só de música e ainda assim boicotá-las. Mas pra tanto seria necessário uma organização horizontal dos músicos, né. Um corporativismo em que "eu não toca e sei que ninguém vai tocar", isso forçaria as casas a se repensarem. Mas como tá todo mundo com a corda no pescoço, ou mesmo com vontade de ser mais e mais visto, mostrar bastante o trabalho, muitos de nós acabamos topando qualquer proposta.
    Enquanto a os músicos não se organizam a tal ponto, é melhor mesmo não estar fisiologicamente ligada à musica. Agora dizer que não é profissional por isso, bom, se não é, temos que pensar afinal o que é profissionalização. E acho que quem se preocupa com o que faz, nega o que não acha ético, e dá o acabamento de um escultor à sua obra, bom, acho que é desse profissional que precisamos, não daquele que está infelizmente pronto para aceitar as migalhas que oferecem.
    E claro e mais que claro, todas as áreas profissionais e artísticas funcionam assim, se você não aceita, tem quem aceite, e é assim que casas ricas, em toda frente, continuam ricas, tratando o cliente como arte e o trabalhador como bicho.
    Sigamos, amiga, a luta é longa.

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  2. Brauner, que bom contar com sua opinião por aqui. Esta questão da união entre os músicos (e do boicotes necessários etc.) vem martelando há tempos em minha cabecinha, e acho que realmente o principal deste texto é este ponto (mesmo que eu não tenha percebido isso até você falar). Acho que com uma verdadeira união entre os músicos realmente talvez nem fosse necessário "jogar nas onze". O cenário seria bem diferente. As condições seriam dignas e viver de música seria uma realidade. É preciso falar muito sobre este assunto, ainda. Beijo grande e muita saudade!

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