Sempre
admirei muito quem vive exclusivamente da música, dentre meus
colegas. De fato, deve ser um grande desafio e um privilégio, ao
mesmo tempo. Trabalhar exclusivamente com aquilo que se ama, aquilo
que se faz de melhor. E é claro que esta dedicação exclusiva,
consequentemente, sempre traz mais trabalhos e proporciona que o
músico seja cada vez mais requisitado e conhecido no meio. Além de
ficar cada vez melhor em sua função (“quem toca mais, toca mais”,
certa vez ouvi de um percussionista-poeta!).
Sempre quis
poder fazer isso. Quando
cantava na noite, pensava: “Seria bom ter tempo para pensar com
toda a calma no repertório. Seria bom acrescentar novas canções a
cada semana
e ter mais tempo para ensaiar com o violonista...”. Infelizmente
meu repertório ficava muito tempo “estacionado” com as mesmas
músicas, e eu não conseguia pensar com toda a calma no figurino e
em outros detalhes. Não conseguia organizar bem meu tempo para dar
igual atenção aos meus dois trabalhos. Por isso, pensava o quanto
seria bom só cantar, mais nada!
Mas, neste
ano de tantas mudanças que tem sido 2013, minha opinião sobre isso
mudou um pouco.
Trabalho
como tradutora, revisora e copidesque. Felizmente é um trabalho que
faço em casa, o que colabora muito com o meu trabalho de cantora.
Posso montar meus horários, tenho bastante flexibilidade. E é algo
que tenho muito prazer em fazer, pois lidar com letras e livros é
sonho antigo - desde os 10 anos de idade, quando li Lygia Bojunga
pela primeira vez, fiquei apaixonada por literatura e quis me tornar
escritora.
Mas se há
um ano eu, apesar de gostar, lamentava ter que fazer traduções pela
manhã depois de uma cansativa noite de show, hoje não o faço mais.
Acho bom e – quem diria – também um privilégio ter este outro
trabalho. Graças a ele, não coloco um peso enorme, uma
responsabilidade gigante sobre a música. Graças a ele, posso negar
qualquer show que, em minha avaliação, seja apenas perda de tempo.
Graças a ele (e esta é a melhor parte) posso ter uma atitude mais
política artisticamente e não consentir com coisas que considero
incorretas. Posso dizer “não” àquela casa que trata os músicos
na base dos 50 reais, por exemplo.
Outro dia,
no início do ano, estava falando com um instrumentista exatamente
sobre esta questão de tocar ou não em lugares que não valorizam o
músico, e comentei que há minutos atrás eu havia recusado, por
telefone, o convite para tocar em uma casa da Lapa (a casa é
conhecidamente desonesta: fatura muito, muito dinheiro e paga um
valor irrisório aos músicos, comparativamente. É uma das poucas
casas que teria a oportunidade de tratar os músicos com dignidade e
não o faz. Estamos falando de uma casa rica, não de um barzinho
humilde!). Meu colega disse: “Eu não recuso porque não estou
podendo”... E é verdade. Certamente ele não pode fazer isso, pois
vive exclusivamente de sua função de instrumentista. Mas fico feliz
em perceber que, por não viver só de música, posso optar. Posso
encaminhar da forma que quero minha carreira. E a parte mais preciosa
é essa: posso boicotar aquilo que considero errado; posso não
participar de nada que eu considere injusto. Posso não ser cúmplice
de quem faz com que os músicos, cada vez mais, se tornem
profissionais desiludidos
com a carreira que tanto amam.
(Às vezes
penso: “será que estou ficando radical demais?”. Acho que sim.
Mas será que isso é ruim?)
É claro
que certas vezes fico com pena de não estar fazendo uma produção
do meu trabalho, pois preciso terminar as laudas de uma tradução. É
claro que preferiria estar praticando mais meus instrumentos,
movimentando mais minha carreira de cantora. Mas é o outro lado da
moeda. A diferença é que agora não reclamo de ter que “jogar nas
onze”. Pelo contrário, fico feliz de ter um trabalho que sustenta
minha carreira. Que, além de tudo o que já citei, possibilitou
também que em diversas ocasiões eu garantisse um fixo para os músicos que tocaram comigo
em casas que lucram muito pouco, sem deixá-los na incerteza da
porcentagem do couvert.
Lembro que
há dois anos um músico disse para mim e meu produtor que nós dois
“tínhamos outros trabalhos”; com isso, o indivíduo argumentava
que ele, ao contrário de nós, era profissional e levava aquilo
muito a sério. Acho que, de fato, na época eu não me levava mesmo
muito a sério: não me organizava como hoje, não impunha minhas
vontades, não era ativa na minha função de cantora (isso também é
assunto para outro post, sem dúvidas!). Mas hoje, dois anos depois,
vejo que EXATAMENTE porque levo meu trabalho como cantora muito a
sério é que não sou só musicista. Porque preciso de outra renda que me possibilite pagar uma preparação vocal, por exemplo. E se este
indivíduo,
ou qualquer outra pessoa, achar um demérito
o fato de eu ter outro trabalho (porque isso evidenciaria que não
sou “cantora profissional”), bem, talvez não seja através deste
texto que irei convencer alguém de que sim, sou cantora
profissional. E, talvez, não seja importante convencer ninguém de
nada; apenas fazer meu trabalho com todo o cuidado, como venho
fazendo nos últimos tempos.
Meu sonho
maior é cantar, “musicar” 24 horas por dia. Mas tudo tem o seu
tempo, e ainda não é a hora de (e nem seria possível) largar tudo
e viver só da minha voz. Pelo contrário: agora é hora de trabalhar
bastante para poder investir no que amo e colher os
frutos com o passar do tempo.
Continuemos,
então, jogando nas onze!
Guidi, oi.
ResponderExcluirAcho pertinente sua posição. O mais importante do texto pra mim é o fato de não corroborar com as casas porcas - as que tratam os trabalhadores em geral, garçons, limpeza, como subtrabalho, incluindo aí os músicos.
Seria possível viver só de música e ainda assim boicotá-las. Mas pra tanto seria necessário uma organização horizontal dos músicos, né. Um corporativismo em que "eu não toca e sei que ninguém vai tocar", isso forçaria as casas a se repensarem. Mas como tá todo mundo com a corda no pescoço, ou mesmo com vontade de ser mais e mais visto, mostrar bastante o trabalho, muitos de nós acabamos topando qualquer proposta.
Enquanto a os músicos não se organizam a tal ponto, é melhor mesmo não estar fisiologicamente ligada à musica. Agora dizer que não é profissional por isso, bom, se não é, temos que pensar afinal o que é profissionalização. E acho que quem se preocupa com o que faz, nega o que não acha ético, e dá o acabamento de um escultor à sua obra, bom, acho que é desse profissional que precisamos, não daquele que está infelizmente pronto para aceitar as migalhas que oferecem.
E claro e mais que claro, todas as áreas profissionais e artísticas funcionam assim, se você não aceita, tem quem aceite, e é assim que casas ricas, em toda frente, continuam ricas, tratando o cliente como arte e o trabalhador como bicho.
Sigamos, amiga, a luta é longa.
Brauner, que bom contar com sua opinião por aqui. Esta questão da união entre os músicos (e do boicotes necessários etc.) vem martelando há tempos em minha cabecinha, e acho que realmente o principal deste texto é este ponto (mesmo que eu não tenha percebido isso até você falar). Acho que com uma verdadeira união entre os músicos realmente talvez nem fosse necessário "jogar nas onze". O cenário seria bem diferente. As condições seriam dignas e viver de música seria uma realidade. É preciso falar muito sobre este assunto, ainda. Beijo grande e muita saudade!
ResponderExcluir