quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Mais agitado, mais animado

Pedi para o DJ uma “música mais animada”, pois “tava muito parado”. O coitado ouviu e nem foi grosseiro - talvez já estivesse acostumado com gente inconveniente. Isso foi na festa Loud!, e eu tinha 17 ou 18 anos. Hoje em dia sei o quanto isso é chato, pois sinto na pele esta pressão, vinda do público ou de contratantes. Jamais faria algo parecido de novo.
Lembrei de falar neste assunto pois cantei anteontem em uma festa fechada e em certo momento o produtor disse que os convidados queriam músicas mais animadas. Pensei: opa, este assunto precisa ser abordado. Afinal, este tipo de pedido é uma constante na vida de quem canta na noite ou em eventos.
Em 2009 cantei em uma choperia na Lapa. No repertório, muitas bossas (majoritariamente), depois sambas, no fim alguns forrós. Poucos dias depois (ou no dia seguinte) o grupo com quem me apresentei recebeu um e-mail da produtora da casa. Tínhamos mais dois shows marcados além daquele, mas só o faríamos caso “animássemos” mais nosso repertório. Resultado: tive que aprender várias músicas em uma semana, no maior desespero, e o show (sem meias palavras) ficou uma farofada só; sem sutilezas, só pancada, apelando para sambões e sambas enredo – nada mais ameno, nada mais suave e suingado. Fizemos estritamente a vontade do público e dos produtores da casa. Perdemos a identidade naquela noite, viramos outro grupo. Tudo isso para ganhar um cachê nada bom - mas isso é o de menos. Pior mesmo foi ter que fazer diferente do que queríamos por pura pressão, descaracterizando nosso trabalho. É claro que por um lado foi interessante, por ser um desafio (memorizar letras, melodias, fazer algo que eu nunca tinha feito), mas talvez devêssemos ter dado uma negativa, e ponto final. Não iríamos perder grande coisa, mesmo – como disse, o cachê era uma “beleza” –, e não fugiríamos de nossa proposta.
Certa vez, enquanto cantava a belíssima “Sampa”, percebi o olhar desconcertado da contratante, que veio me pedir ao ouvido que eu cantasse músicas mais animadas. Pensei: ela não havia me chamado para que eu cantasse o meu repertório? Para aquela apresentação não havia acontecido nenhuma comunicação neste sentido; nenhuma recomendação sobre o tipo de música que eu deveria cantar. (Aceito encomendas – na verdade, adoro. Há duas semanas cantei em um evento para o qual pediram – com antecedência, como é o correto – que eu cantasse “Gracias a la vida”, de Violeta Parra. Ouvi bastante a canção, pude estudá-la. Acabou sendo uma das músicas mais lindas que já cantei.) Mas por que chamar um artista e pedir que ele faça de outro jeito? Ora, é mais fácil chamar outro artista, pois certamente ele fará diferente. Me chamar para um evento para que eu seja outra pessoa, outra cantora? Não vejo sentido nisso. Melhor chamar – no caso desta ânsia em animar o ambiente – uma banda de baile, ou um cantor focado em músicas animadas. Não é o meu caso. Adoro cantar um forró, um samba do bom. Mas também gosto de cantar “Romaria”, “A história de Lily Braun”, “João e Maria”...
Vejo um desespero neste sentido entre os donos de bares e os produtores. A Lapa, local onde estão as casas mais preocupadas em angariar clientes - a qualquer custo -, está se tornando um reduto perfeito para esta ditadura das músicas animadas. A lei parece ser aquela de agitar o ambiente a qualquer preço, mesmo que este preço seja a qualidade das músicas.
Sou festeira e também adoro uma bagunça; adoro dançar e curtir músicas animadas. Mas às vezes penso se não é mais adequado ouvir uma música mecânica; colocar no computador uma seleção bem variada de músicas agitadas e curtir sem problemas. Não haverá decepção, neste caso. Pois quando você se propõe a contratar um grupo para a sua festa, precisa lembrar que está lidando com seres humanos, que por sua vez terão um jeito específico, uma proposta específica, uma identidade. Há o risco de decepção com o repertório; há o risco de intervalos entre as músicas; há o risco dos músicos não saberem exatamente aquela música que você tanto queria ouvir...
Os melhores shows que já vi não tiveram esta preocupação de “agitar” ninguém. Os artistas fizeram o que queriam, tocaram as músicas que sentiram vontade de tocar. Fui a um show do Caetano, em Niterói, no final do ano passado, e fiquei impressionada com a quantidade de baladas que ele tocou, aparentemente sem se preocupar com o que nós, o público, iríamos achar daquilo. Fez o que queria. E foi maravilhoso (“Ei, Caetano, agita isso aí! Tá parado demais” Imagina?). O irônico é que o Caetano é um dos artistas mais criticados por aí – e (exatamente por isso?) é um dos que menos parece se importar com a opinião do público. A pressão que ele deve sofrer, aliás, é mil vezes maior do que a pequena pressão que vez ou outra fazem em mim. Mas é interessante pensar em como ele adquiriu esta liberdade. Será que conquistou com o tempo, com a experiência? Ou é algo inato? Só sei que é inspirador vê-lo cantando o que quer, resgatando músicas totalmente “lado B” ou cantando as novas composições, ainda um pouco desconhecidas.
É preciso coragem para se afirmar como artista, pois existirão milhares de pessoas querendo que você faça outra coisa, de outro jeito. Que você seja mais vendável, menos tímido, mais popular, mais comunicativo. Que você cante o que a rádio toca. Que você “agite a festa”.
Cantar o que você gosta, ser fiel à sua identidade (que pode mudar todos os dias) exige rigor consigo, firmeza para negar propostas desconcertantes.

Acredito, sim, na flexibilidade e nas concessões, mas acredito também no respeito ao trabalho do artista e no nosso valor, que existe exatamente quando sabemos o que queremos e firmamos um compromisso com isso. 

3 comentários: