Pedi para o DJ uma “música mais animada”, pois “tava
muito parado”. O coitado ouviu e nem foi grosseiro - talvez já estivesse
acostumado com gente inconveniente. Isso foi na festa Loud!, e eu tinha 17 ou
18 anos. Hoje em dia sei o quanto isso é chato, pois sinto na pele esta pressão,
vinda do público ou de contratantes. Jamais faria algo parecido de novo.
Lembrei de falar neste assunto pois cantei
anteontem em uma festa fechada e em certo momento o produtor disse que os
convidados queriam músicas mais animadas. Pensei: opa, este assunto precisa ser
abordado. Afinal, este tipo de pedido é uma constante na vida de quem canta na
noite ou em eventos.
Em 2009 cantei em uma choperia na Lapa. No
repertório, muitas bossas (majoritariamente), depois sambas, no fim alguns
forrós. Poucos dias depois (ou no dia seguinte) o grupo com quem me apresentei
recebeu um e-mail da produtora da casa. Tínhamos mais dois shows marcados além
daquele, mas só o faríamos caso “animássemos” mais nosso repertório. Resultado:
tive que aprender várias músicas em uma semana, no maior desespero, e o show
(sem meias palavras) ficou uma farofada só; sem sutilezas, só pancada, apelando
para sambões e sambas enredo – nada mais ameno, nada mais suave e suingado. Fizemos
estritamente a vontade do público e dos produtores da casa. Perdemos a
identidade naquela noite, viramos outro grupo. Tudo isso para ganhar um cachê
nada bom - mas isso é o de menos. Pior mesmo foi ter que fazer diferente do que
queríamos por pura pressão, descaracterizando nosso trabalho. É claro que por
um lado foi interessante, por ser um desafio (memorizar letras, melodias, fazer
algo que eu nunca tinha feito), mas talvez devêssemos ter dado uma negativa, e
ponto final. Não iríamos perder grande coisa, mesmo – como disse, o cachê era
uma “beleza” –, e não fugiríamos de nossa proposta.
Certa vez, enquanto cantava a belíssima “Sampa”,
percebi o olhar desconcertado da contratante, que veio me pedir ao ouvido que eu
cantasse músicas mais animadas. Pensei: ela não havia me chamado para que eu
cantasse o meu repertório? Para aquela
apresentação não havia acontecido nenhuma comunicação neste sentido; nenhuma
recomendação sobre o tipo de música que eu deveria cantar. (Aceito encomendas –
na verdade, adoro. Há duas semanas cantei em um evento para o qual pediram – com
antecedência, como é o correto – que eu cantasse “Gracias a la vida”, de
Violeta Parra. Ouvi bastante a canção, pude estudá-la. Acabou sendo uma das músicas
mais lindas que já cantei.) Mas por que chamar um artista e pedir que ele faça
de outro jeito? Ora, é mais fácil
chamar outro artista, pois certamente
ele fará diferente. Me chamar para um evento para que eu seja outra pessoa,
outra cantora? Não vejo sentido nisso. Melhor chamar – no caso desta ânsia em
animar o ambiente – uma banda de baile, ou um cantor focado em músicas
animadas. Não é o meu caso. Adoro cantar um forró, um samba do bom. Mas também gosto
de cantar “Romaria”, “A história de Lily Braun”, “João e Maria”...
Vejo um desespero neste sentido entre os donos de
bares e os produtores. A Lapa, local onde estão as casas mais preocupadas em angariar
clientes - a qualquer custo -, está se tornando um reduto perfeito para esta
ditadura das músicas animadas. A lei parece ser aquela de agitar o ambiente a
qualquer preço, mesmo que este preço seja a qualidade das músicas.
Sou festeira e também adoro uma bagunça; adoro dançar
e curtir músicas animadas. Mas às vezes penso se não é mais adequado ouvir uma
música mecânica; colocar no computador uma seleção bem variada de músicas agitadas
e curtir sem problemas. Não haverá decepção, neste caso. Pois quando você se
propõe a contratar um grupo para a sua festa, precisa lembrar que está lidando
com seres humanos, que por sua vez terão um jeito específico, uma proposta
específica, uma identidade. Há o risco de decepção com o repertório; há o risco
de intervalos entre as músicas; há o risco dos músicos não saberem exatamente
aquela música que você tanto queria ouvir...
Os melhores shows que já vi não tiveram esta
preocupação de “agitar” ninguém. Os artistas fizeram o que queriam, tocaram as
músicas que sentiram vontade de tocar. Fui a um show do Caetano, em Niterói, no
final do ano passado, e fiquei impressionada com a quantidade de baladas que
ele tocou, aparentemente sem se preocupar com o que nós, o público, iríamos
achar daquilo. Fez o que queria. E foi maravilhoso (“Ei, Caetano, agita isso
aí! Tá parado demais” Imagina?). O irônico é que o Caetano é um dos artistas
mais criticados por aí – e (exatamente por isso?) é um dos que menos parece se
importar com a opinião do público. A pressão que ele deve sofrer, aliás, é mil
vezes maior do que a pequena pressão que vez ou outra fazem em mim. Mas é interessante
pensar em como ele adquiriu esta liberdade. Será que conquistou com o tempo,
com a experiência? Ou é algo inato? Só sei que é inspirador vê-lo cantando o
que quer, resgatando músicas totalmente “lado B” ou cantando as novas composições,
ainda um pouco desconhecidas.
É preciso coragem para se afirmar como artista, pois
existirão milhares de pessoas querendo que você faça outra coisa, de outro
jeito. Que você seja mais vendável, menos tímido, mais popular, mais
comunicativo. Que você cante o que a rádio toca. Que você “agite a festa”.
Cantar o que você gosta, ser fiel à sua identidade
(que pode mudar todos os dias) exige rigor consigo, firmeza para negar
propostas desconcertantes.
Acredito, sim, na flexibilidade e nas concessões,
mas acredito também no respeito ao trabalho do artista e no nosso valor, que
existe exatamente quando sabemos o que queremos e firmamos um compromisso com
isso.
Maravilhoso, Guidi! Abração, Stepheson
ResponderExcluirObrigada, Stepheson! Grande abraço!
ResponderExcluirMuito bom Guidi! Parabéns
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